Bem, um gajo não gosta de soar muito repetitivo mas, uma última palavra sobre a especulação sobre a dívida portuguesa por alguém que explica de uma forma muito clara aquilo que quis dizer há uns tempos atrás.
"A Grande Crise, como alguns começam a chamá-la, tem aclarado dramaticamente o seu perfil nestes últimos dias. Começou na forma de um tsunami financeiro causado por uma gigantesca mentira: o que pareciam ser investimentos fabulosos e negócios arriscados, não eram mais que espuma venenosa. Pura toxicidade. E evoluiu agora para ataques especulativos às dívidas soberanas, parte delas contraídas para evitar o colapso do sistema financeiro mundial e os efeitos do seu contágio à economia.
Os famosos mercados haviam enganado o próprio Adam Smith. «Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro e do padeiro que esperamos o nosso jantar, mas da consideração que eles têm pelos próprios interesses». O interesse – e não as boas intenções – é a mãe da prosperidade e do bem comum, acreditava Smith. Como todos os ilustrados, era um idealista da Razão, pois, na sua descrição do mercado, prescindia dos sentimentos e das pulsões instintivas da condição humana. Smith tinha muito presente, sim, o estado de ânimo do pobre. A inveja ou o ressentimento do humilde justificam, no seu entender, que o Estado destine uma boa parte do orçamento a garantir a segurança do proprietário. Por outro lado, parecia estar convencido de que os interesses são razoáveis em si mesmos. Na sua mente lógica, britânica e desapaixonada, o mercado estabeleceria geralmente associações de interesse racional.
Adam Smith não parecia temer a avidez doentia. E, no entanto, os mercados – sacralizados nas últimas décadas – deram carta de alforria a sentimentos e instintos tão perigosos quanto o ressentimento dos humildes: o vício da posse e a avidez compulsiva fomentaram o roubo à escala global e levaram à transgressão de todos os limites. Smith não previu as mutações que a ética do interesse sofreria. O fundamentalismo neoliberal avalizou a pior peste económica da História.
Ninguém se livrou deste mal. A pobreza aumentou espectacularmente com a crise, apesar dos ricos estarem cada vez mais ricos, e assedia a fortaleza europeia. Não é preciso ser partidário das teorias conspirativas para deduzir que o ataque dos mercados financeiros à Grécia, Portugal e Espanha é, não só um próspero negócio especulativo à custa da dívida soberana, mas um ataque ao Euro como moeda e à Europa como projecto. Os nossos próprios erros explicam certamente a extrema fraqueza portuguesa: baixa produtividade/competitividade e esbanjamento de dinheiros públicos ao longo de décadas.
Queiram ou não Sócrates e Passos Coelho, queiram ou não os sindicatos, os bancos, as corporações, os interesses que influem nos bastidores ou os grandes grupos que vampirizam o Estado, queira o não o actual establishment: há que corrigir com rapidez, severamente, os nossos erros. Não para obedecer aos arbitrários e obscenos ditames neoliberais, mas para defender o modelo social europeu. Está em jogo algo mais importante que os nossos lucros e salários. Está em jogo a Europa. E convém não esquecer que, num mundo globalizado, sem ela não somos nada."
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